Eduardo Galeano, escritor uruguaio com mais de 70
anos, afirma que temos o direito de sonhar e o direito de delirar
Que tal
se delirarmos por um tempinho
Que tal fixarmos nossos
olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo
possível?
O ar estará mais limpo de
todo o veneno que
Não provenha dos medos
humanos e das humanas paixões.
Nas ruas, os carros serão
esmagados pelos cães.
As pessoas não serão
dirigidas pelos carros
Nem serão programadas
pelo computador.
Nem serão compradas pelos
supermercados
Nem serão assistidas pela
TV,
A TV deixará de ser o
membro mais importante da família,
Será tratada como um
ferro de passar roupa
Ou uma máquina de lavar.
Será incorporado aos
códigos penais
O crime da estupidez para
aqueles que a cometem
Por viver só para ter o
que ganhar
Ao invés de viver
simplesmente
Como canta o pássaro em
saber que canta
E como brinca a criança
sem saber que brinca.
Em nenhum país serão
presos os jovens
Que se recusem ao serviço
militar
Senão aqueles que queiram
servi-lo.
Ninguém viverá para
trabalhar.
Mas todos trabalharemos
para viver.
Os economistas não
chamarão mais
De nível de vida o nível
de consumo
E nem chamarão a
qualidade de vida
A quantidade de coisas.
Os cozinheiros não mais
acreditarão
que as lagostas gostam de
ser fervidas vivas.
Os historiadores não
acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os políticos não
acreditarão que os pobres
Se encantam em comer
promessas.
A solenidade deixará de
acreditar que é uma virtude,
E ninguém, ninguém levará
a sério alguém que não seja capaz de rir de si mesmo.
A morte e o dinheiro
perderão seus mágicos poderes
E nem por falecimento e
nem por fortuna
Se tornará o canalha em
virtuoso cavalheiro.
A comida não será uma
mercadoria
Nem a comunicação um
negócio
Porque a comida e a
comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome
Porque ninguém morrerá de
indigestão.
As crianças de rua não
serão tratadas como se fossem lixo
Porque não existirão
crianças de rua.
As crianças ricas não
serão como se fossem dinheiro
Porque não haverá
crianças ricas.
A educação não será
privilégio daqueles que podem pagá-la
E a polícia não será a
maldição daqueles que podem comprá-la
A justiça e a liberdade,
irmãs siamesas
Condenadas a viver
separadas
Voltarão a juntar-se, bem
agarradinhas,
Costas com costas.
Na Argentina, as loucas
da Plaza de Mayo
Serão um exemplo de saúde
mental
Porque elas se negaram a
esquecer
Os tempos da amnésia
obrigatória.
A Santa Madre Igreja
corrigirá
Algumas erratas das Tábuas de Moisés,
E o sexto mandamento
mandará festejar o corpo.
A Igreja ditará outro
mandamento que Deus havia esquecido:
“ Amarás a natureza, da
qual fazes parte”
Serão reflorestados os
desertos do mundo
E os desertos da alma
Os desesperados serão
esperados
E os perdidos serão
encontrados
Porque eles são os que se
desesperaram por muito esperar
E eles se perderam por
tanto buscar.
Seremos compatriotas e
contemporâneos
De todos o que tenham
A vontade de beleza e
vontade de justiça
Tenham nascido quando
tenham nascido
Tenham vivido onde tenham
vivido
Sem importarem nem um
pouquinho
As fronteiras do mapa e
do tempo.
Seremos imperfeitos
Porque a perfeição
continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses
Mas neste mundo,
trapalhão e fodido,
Seremos capazes
De viver cada dia como se
fosse o primeiro
E cada noite como se
fosse a última."
Eduardo Galeano
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