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12/12/15

Madagascar


Madagáscar é uma gota de licor
meteorito ou anêmona, vagando 
por minhas veias e artérias,
formiga-me, é um grito repetido
por inúmeros ecos no meu arcabuço, 
é um sonho erodido de tão sonhado.

Os búzios, se os ouço, trazem-me
apelos do Índico, vestígios do sopro
das sereias: há-as, creiam,
só Ulisses e Vasco da Gama resistiram
por surdos que eram à linhagem
das aromáticas consoantes douradas.


Fernando Ferreira de Loanda

Ano Novo




Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)
                                                   

                                                      Gullar Ferreira.

23/11/15

  A felicidade às vezes é uma bênção, mas geralmente é uma conquista.

sábios pensamentos...


“Cada pessoa é um mundo inteiro. Faça um favor a uma pessoa, e faça um mundo de diferença.”

14/11/15

O tempo passa ? Não passa.


O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.

Carlos Drummond de Andrade

Quero...



Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
dementes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de ama-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Carlos Drummond de Andrade

28/10/15

A Ciencia


Cada descoberta nova da ciência é uma porta nova pela qual encontro mais uma vez Deus, o autor dela

Albert Einstein

Pensamento...


Existem apenas duas coisas infinitas - o Universo e a estupidez humana. E sobre o Universo não tenho a certeza.

Albert Einstein

Talvez sonhasse, quando a vi


Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando ...

Olavo Bilac

Delírio


Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

Olavo Bilac

26/10/15

A natureza


~




A beleza da natureza, a câmara e o homem que faz um trabalho absolutamente fantástico.

A árvore




A árvore", de Geir Campos:

Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?

Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?

Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências – que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos –

demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo,
E dize-me: há esperança para o Homem?

A Poesia




A poesia cruza a terra sozinha,
apoia sua voz no pesar do mundo
e nada pede nem sequer palavras.
Chega de longe e sem hora, nunca avisa;
Possui a chave da porta.

Ao entrar sempre se detém a fitar-nos.
Depois abre sua mão e nos entrega
uma flor ou um cascalho, algo secreto,
mas tão intenso que o coração palpita
demasiado veloz. E despertamos.

Eugénio Montejo

20/10/15

Livro aberto



Quero que tenhas muitas páginas
E versos difíceis de entender
Quero que me digas onde vais
E que nada fique por dizer…
Sei que não há lugares eternos.
Esta cadeira tem horas,
Há ficar e partir…
Há um entardecer
Para os vagares e demoras.
Até pode chover…
Abre e diz-me a teu jeito
Essa página, e outra, e outra,
Mas não, não me toques ainda.
Assim aberto
Fica
Perto
Mas não me toques ainda.
Deixa-me ler até ao fim.
Com os olhos, com o peito
Antes que o vento
Vire a página da decisão.
Quero ser eu
A tocar essas páginas
Que vou ler e anotar.
Mas por agora, quero ler-te
Só ler-te.
Quero amar-te devagar.


Carlos Campos

19/10/15

Sorriso




Falta-me ainda construir o poema
que sem rodeios cantará
a festa de estar contigo.
Entretanto, exploro um tema,
sedento de palavras que não há
para dizer o que digo:
o infindável tema do sorriso
que te marca o olhar.
E de nada mais preciso
para continuar.


Torquato da Luz

18/10/15

Trono




Pus-te num trono, que é o lugar onde
deve estar quem se ama, esse lugar
da alma que, sendo íntimo, não esconde
a aparência de altar
de uma igreja singular.
Mas, como a crença é sempre vacilante
e não se pode ter por adquirida,
hás-de saber que nada nos garante
que eu fique a venerar-te toda a vida.


Torquato da Luz

07/10/15

Há mulheres que trazem o mar nos olhos.



Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens…
Há mulheres que são maré em noites de tardes…
e calma

Sophia de Mello Breyner Andresen

03/06/15

Contemplo o que não vejo

Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro,
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou
Não sinto, não sou triste,
Mas triste é o que estou.

Fernando Pessoa

23/05/15

Tudo Pára...



Quando a gente fecha a porta tanta coisa se transforma
Tudo é muito mais bonito nessa hora
Entre os beijos que trocamos pouco a pouco nós deixamos
Nossas roupas espalhadas pelo chão
E é tão grande o amor que a gente faz
Que em nosso quarto já não cabe mais
Pelas frestas da janela se derrama pela rua
E provoca inexplicáveis emoções

Tudo pára quando a gente faz amor
Tudo pára quando a gente faz amor
Porque alguma coisa linda invade os corações lá fora
Tudo pára quando a gente faz amor

As pessoas se sorriem e se falam
Se entendem e se calam no fascínio desse instante
Passarinhos fazem festa nos seus ninhos
No momento em que sozinhos somos muito mais amantes

E é tão grande o amor que agente faz
Que pelas ruas já não cabe mais
Se eleva pelos ares, toma conta da cidade
E felicidade é tudo que se vê

Os sinais se abrem mas ninguém tem pressa
E o carteiro olhando o céu esquece até da carta expressa
Silenciam-se as buzinas, os casais fecham cortinas
E o mar se faz mais calmo por nós dois

E é tão grande o amor que a gente faz
Que até os absurdos são reais
Pára o bairro… e a cidade nessa hora tão feliz…
E é tanto amor que pára até o país

Tudo pára quando a gente faz amor
Tudo pára quando a gente faz amor
Porque alguma coisa linda invade os corações lá fora
Tudo pára quando a gente faz amor


07/05/15

A tua ausencia doi-me






Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto.

São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
realidade aproxima-te de ti, agora que
os dias que correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refração de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

05/05/15

Um amor




Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. 
Depois, na rua, ainda apanhámos o crepúsculo.

As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. 

Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, 
sem estares ali, continuavas ao meu lado. 

E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

Nuno Júdice 

A tua mão



Tiro a mão que me esconde o triângulo,
e ela resiste à mão que a desvia; mas
procuro acertar no seu ângulo, e entre-
ver a fresta por onde o amor corria.

Beijo essa mão e ela abre o caminho
para onde me encontro e me perco,
bebendo desse cálice o puro vinho
que me liberta sem sair do cerco.

Amo a tua mão que me guia e prende,
a doce mão de tão finos dedos
a que o meu desejo se rende;

e ao procurá-la, sabendo o que me faz,
deixo que me ensine os seus segredos,
e guardo-a na minha, quando ma dás.



Nuno Júdice

28/04/15

Subitamente surge... Tem o teu rosto


O paraíso terrestre é uma flor verde.

As árvores abrem-se ao meio.

O que é sucessivo perde-se.

Se o tempo modifica os seres e os objectos

eu sinto a diferença e gasto-me.

O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada

uma folha branca à transparência da lâmpada.

Soam então os barulhos. Soam

de dentro das janelas,

de dentro das caixas fechadas há mais tempo,

de dentro das chávenas meias de café.

É tarde e és tu,

acima de tudo,

entre a manhã e as árvores,

à luz dos olhos,

à luz só do límpido olhar.


Nuno Júdice

Alegoria Floral



Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raiz.

Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma tranparência de ribeiro.

Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.

Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.


Nuno Júdice

22/04/15

Desejo




Queria ser essa noite que te envolve; e
cobrir-te com o peso obscuro dos braços

que não se vêem. 

Um murmúrio

desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte de pálpebras. 


Deixarias que te olhasse
o fundo dos olhos, onde brilha

a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.




Nuno Júdice

Fons vitae






As confidências demoram-se no céu da boca
como as nuvens lentas do Outono. Sopro-as,
para que o céu se limpe e apenas uma névoa vaga
se cole ao que me queres dizer; mas
encostas-me os lábios ao ouvido e tu, sim,
é que me contas que céu é este, e de onde
vêm as nuvens que o cobrem. 
Sentimentos,
emoções, paixões, interpõem-se entre
cada frase. Nem há outros assuntos
quando nos encontramos, e me começas a falar,
como se fosse o coração a única
fonte do que dizemos.


Nuno Júdice

21/04/15

Equinócio




O amor tem uma música que nasce das
catorze linhas que se encontram entre os
dedos que escrevem o soneto e os lábios
que o lêem. 
Toco esta música quando
desenho o teu rosto, e começo a seguir
a linha que se solta dos teus lábios para
ver se chego ao horizonte do teu corpo,
onde o verso dobra o círculo de um
horizonte imprevisível. 
E dás-me o outro
lado da vida, para que eu descubra
o continente em que o sol nunca se põe,
as ilhas quentes de um calor de pássaros,
e o rumor incessante da maré a que a
tua voz roubou a espuma de um murmúrio.

Nuno Júdice

20/04/15

A mão que esconde mais do que oferece


A mão que esconde mais do que oferece,
os olhos de presa dominando o caçador.
E os teus lábios que murmuram a prece
de quem só reza no instante do amor.

E se falasse dos teus olhos, dos teus braços
desse corpo em que me perco e te ganho,
não mais acabaria o que tem de acabar;
uma respiração de suspiros e de abraços
neste canto em que és tudo o que eu tenho,
nesta viagem em que não tem fundo o mar.


Nuno Júdice

O que temos


Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.


Nuno Júdice,


Bonito este tema...

19/04/15

Se houvesse degraus na terra



Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


Herberto Helder

17/04/15

Fonte I




Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

Herberto Helder

15/04/15

Afrodite Formosa



Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...


Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão provocante de pudor,
De volúpia, de reserva, de abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão
corpo.
Não és mística, não exacerbas, não
angústias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...
Herbert Helder

06/04/15

Elegia do Amor

Lembras-te, meu amor, 

Das tardes outonais, em que íamos os dois, 
Sozinhos, passear, para fora do povo, alegre e dos casais, 
Onde só Deus pudesse ouvir-nos conversar? 
Tu levavas na mão um lírio enamorado, 
E davas-me o teu braço; 
E eu, triste, meditava na vida, em Deus, em ti... 
E, além, o sol doirado morria, conhecendo 
A noite que deixava. Harmonias astrais 
Beijavam teus ouvidos; 
Um crepúsculo terno e doce diluía, 
Na sombra, o teu perfil e os montes doloridos... 
Erravam, pelo Azul, canções do fim do dia. 
Canções que, de tão longe, o vento vagabundo 
Trazia, na memória... 
Assim o que partiu em frágil caravela, 
E andou por todo o mundo, traz, no seu coração, 
A imagem do que viu. 

Olhavas para mim, ás vezes, distraída, 
Como quem olha o mar, à tarde, dos rochedos... 
E eu ficava a sonhar, qual névoa adormecida, 
Quando o vento também dorme nos arvoredos. 
Olhavas para mim... 
Meu corpo rude e bruto vibrava, como a onda 
A alar-se em nevoeiro. olhavas, descuidada 
E triste... Ainda hoje escuto a música ideal 
Do teu olhar primeiro! Ouço bem tua voz, 
Vejo melhor teu rosto no silêncio sem fim, 
Na escuridão completa! Ouço-te em minha dor. 
Ouço-te em meu desgosto e na minha esperança 
Eterna de poeta! 
O sol morria, ao longe; E a sombra da tristeza 
Velava, com amor, nossas doridas frontes. 
Hora em que a flor medita e a pedra chora e reza, 
E desmaiam de mágoa as cristalinas fontes. 
Hora santa e perfeita, em que íamos, sozinhos, 
Felizes, através da aldeia muda e calma, 

Mãos dadas, a sonhar, ao longo dos caminhos... 
Tudo, em volta de nós, tinha um aspecto de alma. 
Tudo era sentimento, Amor e piedade. 
A folha que tombava era alma que subia... 
E, sob os nossos pés, a terra era saudade, 
A pedra comoção e o pó melancolia. 
Falavas duma estrela e deste bosque em flor; 
Dos ceguinhos sem pão, dos pobres sem um manto. 
Em cada tua palavra, havia eterna dor; 
Por isso, a tua voz me impressionava tanto! 
E punha-me a cismar que eras tão boa e pura, 
Que, muito em breve — sim! 
Te chamaria o céu! E soluçava, ao ver-te 
Alguma sombra escura, na fronte, que o luar 
Cobria, como um véu. 
A tua palidez que medo me causava! 
Teu corpo era tão fino e leve (oh meu desgosto!) 
Que eu tremia, ao sentir o vento que passava! 
Caía-me, na alma, a neve do teu rosto. 

Como eu ficava mudo e triste, sobre a terra! 
E uma vez, quando a noite amortalhava a aldeia, 
Tu gritaste, de susto, olhando para a serra: 
— Que incêndio! — E eu, a rir, 
Disse-te — É a lua cheia!... 
E sorriste também do teu engano. A lua 
Ergueu a branca fronte, acima dos pinhais, 
Tão ébrio de esplendor, tão casta e irmã da tua, 
Que eu beijei sem querer, seus raios virginais. 
E a lua, para nós, os braços estendeu. 
Uniu-nos num abraço, espiritual, profundo, 
E levou-nos assim, com ela, até ao céu 
Mas, ai, tu não voltaste e eu regressei ao mundo. 

Teixeira de Pascoaes

Encantamento


Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar 
A tua doce e angélica Figura, 
Esquecido, embebido num luar, 
Num elevo perfeito e graça pura! 

E à força de sorrir, de me encantar, 
Diante de ti, mimosa Criatura, 
Suavemente sentia-me apagar... 
E eu era sombra apenas e ternura. 

Que inocência! que aurora! que alegria! 
Tua figura de Anjo radiava! 
Sob os teus pés a terra florescia, 

E até meu próprio espírito cantava! 
Nessas horas divinas, quem diria 
A sorte que já Deus te destinava! 

Teixeira de Pascoais

05/04/15

Nudez
















Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria e o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estranho,
estando e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía:
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)


Carlos Drummond de Andrade