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28/04/15

Subitamente surge... Tem o teu rosto


O paraíso terrestre é uma flor verde.

As árvores abrem-se ao meio.

O que é sucessivo perde-se.

Se o tempo modifica os seres e os objectos

eu sinto a diferença e gasto-me.

O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada

uma folha branca à transparência da lâmpada.

Soam então os barulhos. Soam

de dentro das janelas,

de dentro das caixas fechadas há mais tempo,

de dentro das chávenas meias de café.

É tarde e és tu,

acima de tudo,

entre a manhã e as árvores,

à luz dos olhos,

à luz só do límpido olhar.


Nuno Júdice

Alegoria Floral



Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raiz.

Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma tranparência de ribeiro.

Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.

Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.


Nuno Júdice

22/04/15

Desejo




Queria ser essa noite que te envolve; e
cobrir-te com o peso obscuro dos braços

que não se vêem. 

Um murmúrio

desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte de pálpebras. 


Deixarias que te olhasse
o fundo dos olhos, onde brilha

a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.




Nuno Júdice

Fons vitae






As confidências demoram-se no céu da boca
como as nuvens lentas do Outono. Sopro-as,
para que o céu se limpe e apenas uma névoa vaga
se cole ao que me queres dizer; mas
encostas-me os lábios ao ouvido e tu, sim,
é que me contas que céu é este, e de onde
vêm as nuvens que o cobrem. 
Sentimentos,
emoções, paixões, interpõem-se entre
cada frase. Nem há outros assuntos
quando nos encontramos, e me começas a falar,
como se fosse o coração a única
fonte do que dizemos.


Nuno Júdice

21/04/15

Equinócio




O amor tem uma música que nasce das
catorze linhas que se encontram entre os
dedos que escrevem o soneto e os lábios
que o lêem. 
Toco esta música quando
desenho o teu rosto, e começo a seguir
a linha que se solta dos teus lábios para
ver se chego ao horizonte do teu corpo,
onde o verso dobra o círculo de um
horizonte imprevisível. 
E dás-me o outro
lado da vida, para que eu descubra
o continente em que o sol nunca se põe,
as ilhas quentes de um calor de pássaros,
e o rumor incessante da maré a que a
tua voz roubou a espuma de um murmúrio.

Nuno Júdice

20/04/15

A mão que esconde mais do que oferece


A mão que esconde mais do que oferece,
os olhos de presa dominando o caçador.
E os teus lábios que murmuram a prece
de quem só reza no instante do amor.

E se falasse dos teus olhos, dos teus braços
desse corpo em que me perco e te ganho,
não mais acabaria o que tem de acabar;
uma respiração de suspiros e de abraços
neste canto em que és tudo o que eu tenho,
nesta viagem em que não tem fundo o mar.


Nuno Júdice

O que temos


Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.


Nuno Júdice,


Bonito este tema...

19/04/15

Se houvesse degraus na terra



Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


Herberto Helder

17/04/15

Fonte I




Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

Herberto Helder

15/04/15

Afrodite Formosa



Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...


Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão provocante de pudor,
De volúpia, de reserva, de abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão
corpo.
Não és mística, não exacerbas, não
angústias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...
Herbert Helder

06/04/15

Elegia do Amor

Lembras-te, meu amor, 

Das tardes outonais, em que íamos os dois, 
Sozinhos, passear, para fora do povo, alegre e dos casais, 
Onde só Deus pudesse ouvir-nos conversar? 
Tu levavas na mão um lírio enamorado, 
E davas-me o teu braço; 
E eu, triste, meditava na vida, em Deus, em ti... 
E, além, o sol doirado morria, conhecendo 
A noite que deixava. Harmonias astrais 
Beijavam teus ouvidos; 
Um crepúsculo terno e doce diluía, 
Na sombra, o teu perfil e os montes doloridos... 
Erravam, pelo Azul, canções do fim do dia. 
Canções que, de tão longe, o vento vagabundo 
Trazia, na memória... 
Assim o que partiu em frágil caravela, 
E andou por todo o mundo, traz, no seu coração, 
A imagem do que viu. 

Olhavas para mim, ás vezes, distraída, 
Como quem olha o mar, à tarde, dos rochedos... 
E eu ficava a sonhar, qual névoa adormecida, 
Quando o vento também dorme nos arvoredos. 
Olhavas para mim... 
Meu corpo rude e bruto vibrava, como a onda 
A alar-se em nevoeiro. olhavas, descuidada 
E triste... Ainda hoje escuto a música ideal 
Do teu olhar primeiro! Ouço bem tua voz, 
Vejo melhor teu rosto no silêncio sem fim, 
Na escuridão completa! Ouço-te em minha dor. 
Ouço-te em meu desgosto e na minha esperança 
Eterna de poeta! 
O sol morria, ao longe; E a sombra da tristeza 
Velava, com amor, nossas doridas frontes. 
Hora em que a flor medita e a pedra chora e reza, 
E desmaiam de mágoa as cristalinas fontes. 
Hora santa e perfeita, em que íamos, sozinhos, 
Felizes, através da aldeia muda e calma, 

Mãos dadas, a sonhar, ao longo dos caminhos... 
Tudo, em volta de nós, tinha um aspecto de alma. 
Tudo era sentimento, Amor e piedade. 
A folha que tombava era alma que subia... 
E, sob os nossos pés, a terra era saudade, 
A pedra comoção e o pó melancolia. 
Falavas duma estrela e deste bosque em flor; 
Dos ceguinhos sem pão, dos pobres sem um manto. 
Em cada tua palavra, havia eterna dor; 
Por isso, a tua voz me impressionava tanto! 
E punha-me a cismar que eras tão boa e pura, 
Que, muito em breve — sim! 
Te chamaria o céu! E soluçava, ao ver-te 
Alguma sombra escura, na fronte, que o luar 
Cobria, como um véu. 
A tua palidez que medo me causava! 
Teu corpo era tão fino e leve (oh meu desgosto!) 
Que eu tremia, ao sentir o vento que passava! 
Caía-me, na alma, a neve do teu rosto. 

Como eu ficava mudo e triste, sobre a terra! 
E uma vez, quando a noite amortalhava a aldeia, 
Tu gritaste, de susto, olhando para a serra: 
— Que incêndio! — E eu, a rir, 
Disse-te — É a lua cheia!... 
E sorriste também do teu engano. A lua 
Ergueu a branca fronte, acima dos pinhais, 
Tão ébrio de esplendor, tão casta e irmã da tua, 
Que eu beijei sem querer, seus raios virginais. 
E a lua, para nós, os braços estendeu. 
Uniu-nos num abraço, espiritual, profundo, 
E levou-nos assim, com ela, até ao céu 
Mas, ai, tu não voltaste e eu regressei ao mundo. 

Teixeira de Pascoaes

Encantamento


Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar 
A tua doce e angélica Figura, 
Esquecido, embebido num luar, 
Num elevo perfeito e graça pura! 

E à força de sorrir, de me encantar, 
Diante de ti, mimosa Criatura, 
Suavemente sentia-me apagar... 
E eu era sombra apenas e ternura. 

Que inocência! que aurora! que alegria! 
Tua figura de Anjo radiava! 
Sob os teus pés a terra florescia, 

E até meu próprio espírito cantava! 
Nessas horas divinas, quem diria 
A sorte que já Deus te destinava! 

Teixeira de Pascoais

05/04/15

Nudez
















Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria e o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estranho,
estando e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía:
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)


Carlos Drummond de Andrade


Ausencia



Por mais tarde que seja,
estou vendo a alvorada,
em cravos restituída
e em safiras molhada.

Por Tão certa é a minha vida
que em cego mar escuro
encontro o que procuro
e não me atrevo a nada.

De esplendores ferida,
fecho os olhos. Que ausente
quero ser. Tão distante
que eu mesma não me veja
- à morte indiferente,
para qualquer instante.


 Cecília Meireles

Ar Livre



A menina translúcida passa.
Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
Brilha em sua narina o coral do dia.

Leva o arco-íris em cada fio do cabelo.
Em sua pele, madre-pérolas hesitantes
pintam leves alvoradas de neblina.

Evaporam-se-lhe os vestidos, na paisagem.
É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.

E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos.


Cecília Meireles